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sábado, 26 de julho de 2014

A ESCRAVIDÃO DAS PATENTES: LICENÇA COMPULSÓRIA É A LEI ÁUREA DOS REMÉDIOS


Até quando existirá o monopólio das multinacionais de medicamentos ?


   Lei Áurea (Lei Imperial n.º 3.353), sancionada em 13 de maio de 1888, foi a lei que extinguiu a escravidão no Brasil. Foi precedida pela lei n.º 2.040 (Lei do Ventre Livre), de 28 de setembro de 1871, que libertou todas as crianças nascidas de pais escravos, e pela lei n.º 3.270 (Lei Saraiva-Cotegipe), de 28 de setembro de 1885, que regulava "a extinção gradual do elemento servil".

   No setor petróleo o mundo foi escravizado por décadas até o surgimento das empresas nacionais.
   Na área de fármacos esta hora esta chegando !

   A humanidade vem sofrendo mudanças significativas no contexto mundial, com as crescentes invenções e descobertas no setor farmacêutico, que desde a revolução industrial, é a mola propulsora das inovações tecnológicas. O presente estudo tem por objeto examinar as conseqüências da inclusão normativa oriundas de diversas discussões iniciadas pela Convenção da União de Paris (CUP) e pelo acordo Trade Related Aspects of Intellectual Rights (TRIPs) que criaram a Organização Mundial de Saúde e a Organização Mundial de Comércio. Estas organizações auxiliaram na iniciação da implantação de normas em benefício do desenvolvimento equilibrado entre o interesse das indústrias farmacêuticas e a saúde pública. O Brasil desde o início das convenções vem traçando parâmetros entre a propriedade industrial no contexto farmacêutico, com as necessidades evolutivas de políticas de saúde pública, entre elas o acesso aos medicamentos essenciais e a quebra das patentes farmacêuticas, as chamadas licenças compulsórias, que tem como fundamento o interesse social assegurado por nossa legislação.

   O escritório de Propriedade Intelectual de Taiwan (Tipo), um dos países emergentes que mais registram patentes no mundo, decidiu no final do ano passado conceder uma licença compulsória ao Departamento de Saúde para fabricação local de um antiviral patenteado pelo laboratório Roche. A razão apresentada foi a ameaça iminente de pandemia da gripe aviária no país, o que tornava urgente a necessidade de um estoque compatível de medicamentos. Reiterando sua posição de “equilibrar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual com a necessidade de controle e prevenção de uma doença nacional”, o Tipo tomou o cuidado de estabelecer que, se o Departamento de Saúde obtivesse uma licença voluntária da Roche durante o período em causa, mediante “remuneração adequada”, poderia cancelar a licença compulsória.

Na verdade, Taiwan utilizou um dispositivo legal universalmente reconhecido e adotado. A licença compulsória existe desde o primeiro tratado internacional sobre patentes - a Convenção da União de Paris - e foi mantida em todas as suas revisões. Consta do Acordo TRIPS da OMC e de quase todas as leis de patentes do mundo, inclusive a brasileira. Sua justificativa histórica é de que a patente, não sendo um direito natural e sim uma concessão de natureza comercial, cria monopólio e que monopólios podem gerar abusos, como a prática de preços extorsivos. A licença compulsória é, pois, um mecanismo criado para coibir esses abusos, e tem sido usada por vários países, principalmente Canadá e EUA.
No Seminário Internacional sobre Propriedade Intelectual e Desenvolvimento, realizado em maio deste ano pela ABIFINA, o jurista Jerome Reichman, professor da Faculdade de Direito da Duke University (EUA), mostrou que nos Estados Unidos a licença compulsória é um instrumento banalizado: não somente usado com freqüência como franqueado a funcionários governamentais de terceiro e até quarto escalão. A tradição norte-americana é de acionar o dispositivo para neutralizar práticas antitruste e “especialmente para quebrar cartéis de patentes”, afirma Reichman, bem como à guisa de punição por contratos “leoninos”, desde que provado o abuso e os efeitos anticompetitivos.

Raramente os Estados Unidos utilizam a licença compulsória em casos de “uso governamental”. Mas é justamente neste tópico que se encontra um excelente exemplo para os países em desenvolvimento. Jerome Reichman lembra que, após a grande depressão norte-americana de 1929, a corporação pública Tennessee Valley Authority (TVA), criada para recuperar e desenvolver a degradada infra-estrutura econômica e social da região do vale do rio Tennessee, foi autorizada pelo governo federal a utilizar patentes para produção de fertilizantes e provisão de energia hidrelétrica, “no interesse do desenvolvimento agrícola e industrial” e para “baratear o fornecimento de energia”.
Tabu insustentável
Mesmo desmentidos por suas políticas domésticas, os países de primeiro mundo insistem em deslegitimar perante o mundo em desenvolvimento o instrumento da licença compulsória, associando-o a práticas de violação da propriedade intelectual, como a pirataria, e ameaçando com retaliações comerciais. “Faça o que eu digo, não faça o que eu faço” – esta é a mensagem por trás dos discursos aparentemente técnicos que procuram dissuadir os países menos favorecidos de adotar medidas compensatórias contra abusos de patentes.
Mas o tabu que se pretende construir junto à opinião pública em torno desse dispositivo não é uma unanimidade nos meios de comunicação. Se, por um lado, a mídia de massa tende a aderir a esse empreendimento, certamente movida por interesses comerciais, nas mídias mais democráticas como a Web o cenário é bem diferente. Uma boa referência para sondar o senso comum na Internet é a Wikipedia, enciclopédia on-line de livre acesso construída coletivamente pelos usuários. O verbete de “licença compulsória” atualizado em 18 de agosto de 2006 inclui a seguinte explicação para o uso do instrumento no contexto de patentes: “O fundamento para o uso da licença compulsória consiste no fato de que tentativas de obter uma licença em termos comercialmente razoáveis tenham falhado por um razoável período de tempo... Alguns exemplos de situações nas quais uma licença compulsória pode ser concedida incluem a falta de produção no território da patente por um longo período, invenções financiadas pelo governo, falha ou inabilidade do titular para atender a demanda por um produto patenteado, e situações em que a recusa a um licenciamento voluntário inviabiliza a exploração de uma importante conquista tecnológica.”
A Wikipedia focaliza em especial o acirrado debate em torno da questão da licença compulsória para medicamentos destinados a programas de saúde pública em países do terceiro mundo, fazendo referência à Declaração de Doha, que buscou o enforcement desse aspecto de TRIPS. Por outro lado, destaca como um problema o fato de que “embora as disposições de TRIPS referentes à emergência nacional permitam a concessão de licenças compulsórias em países do terceiro mundo, muitos deles não têm tecnologia para fabricar os medicamentos. Entretanto, TRIPS exige que licenças compulsórias sejam usadas para atender uma necessidade de produção local, o que exclui a possibilidade da importação”.
Seguindo orientação da reunião ministerial da OMC de dezembro de 2005 realizada para equacionar esse problema, mas também como estratégia para manter a licença compulsória como um instrumento sob seu controle – algo como “oferecer os anéis para não perder os dedos” – o Canadá e a União Européia adotaram regulamentos que autorizam suas indústrias a “produzir cópias de medicamentos patenteados para exportar aos países com insuficiente capacidade de produzir remédios para combater seus problemas de saúde pública”. Não é o caso do Brasil, que tem capacidade tecnológica e industrial de sobra para produzir os medicamentos necessários para o combate à Aids e outras moléstias controladas por programas públicos. Mas certamente as indústrias européias e canadenses beneficiárias dessa nova modalidade de licença compulsória estão lucrando bastante, junto com as chinesas e indianas, no fornecimento para programas africanos de combate à Aids patrocinados pela Organização Mundial de Saúde.
América Latina paga caro
Segundo Michel Lotrowska, representante no Brasil da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais de Médicos sem Fronteiras, as indústrias farmacêuticas transnacionais, pressionadas pelos países em desenvolvimento, praticam uma política de redução voluntária de preços segundo critérios que cada empresa decide de forma arbitrária e diferenciada. “Os países da América Latina raramente se beneficiam dos melhores preços oferecidos” – constata Lotrowska. “O Kaletra (lopinavir/ritonavir), produzido pela Abbott, é emblemático dessa nova situação que põe em risco a sustentabilidade do Programa Nacional de DST/Aids. Enquanto a África do Sul paga por ele US$ 500/ano por paciente, o Peru paga US$ 4.500.”
O Brasil, por ter um programa de muito maior escala, até meados do ano passado pagava US$ 2.600/ano por paciente e depois ainda conseguiu algumas reduções, mas ainda assim o preço do medicamento representa um empecilho para a sustentabilidade do programa a médio e longo prazos. A despesa do Ministério da Saúde pulou de R$ 1,9 bilhão em 2002 para R$ 3,2 bilhões em 2005 (só o programa de DST-Aids consumiu R$ 1 bilhão em medicamentos); e para 2006 a previsão é de R$ 4,1 bilhões. Ou seja, os gastos dobraram no curto período de cinco anos. E se for considerado que o real está artificialmente valorizado, gerando sérios problemas para a produção industrial nacional e portanto a política cambial pode sofrer ajustes, os riscos de uma desestabilização se tornam ainda maiores.
Dados levantados pela Organização Médicos sem Fronteiras mostram que a América do Sul representa menos de 4% do mercado mundial de medicamentos, e a África nem chega a 2%. “Como acreditar que fatias tão pequenas do mercado - porém compreendendo populações tão numerosas - podem atrapalhar os lucros das multinacionais?”, questiona Lotrowska. Ele entende que, ao ceder às pressões dos grandes laboratórios, o governo brasileiro faz apenas economias de curto prazo, e que novos acordos desse tipo “não resolvem o problema de sustentação a longo prazo do Programa Nacional de DST/Aids, apenas empurrando o problema para o próximo governo”.
Efetivamente, embora a licença compulsória seja explicitada na lei brasileira de propriedade industrial (nº 9.279/96), dispondo sobre a sua concessão em casos de insuficiência de exploração comercial (art. 68 § 1º); exercício abusivo do direito (art. 68 § 2º); abuso de poder econômico (art. 68 § 3º); concessão de patente dependente (art. 70), e interesse público ou emergência nacional (art. 71), o governo federal hesita em acionar o dispositivo. Apenas ameça. Na gestão de José Serra no Ministério da Saúde de FHC, foi editado o Decreto nº 3.201/99, que preparou terreno para o uso do instrumento em casos de emergência nacional e interesse público estabelecendo como prioridades as áreas de saúde pública, nutrição e defesa do meio ambiente, e determinando que o ministro de Estado responsável pela matéria em causa teria competência para decidir sobre o assunto.
Em 2003 o decreto foi reeditado praticamente sem modificações pelo governo Lula, sob o nº 4.830, mas novamente não chegou a ser aplicado. Serviu apenas como meio de pressão sobre os laboratórios internacionais para reduzir o custo da compra de fármacos e medicamentos para o programa de DST/Aids. O Brasil teme retaliações comerciais e acaba aceitando modestas reduções de preço oferecidas pelos fabricantes dos fármacos patenteados.

A chancela do interesse público


   Na opinião de Jerome Reichman, os países em desenvolvimento não deveriam se intimidar com as pressões do primeiro mundo, dado que “os imperativos do interesse público permanecem consistentes tanto com a Convenção de Paris quanto com TRIPS. Porque os países em desenvolvimento precisam estar especialmente empenhados em contrabalançar os direitos de propriedade intelectual com a necessidade de suprir bens públicos como saúde e educação, eles devem conservar o poder de impor licenças compulsórias no interesse público”. Reichman sugere apenas aos países menos desenvolvidos a não-banalização do instrumento. É indispensável, em sua opinião, o cuidado de que a decisão do licenciamento compulsório para o exercício da prerrogativa do “uso governamental” seja restrito a atividades que estejam normalmente sob a responsabilidade do setor público em qualquer país. O Decreto nº 4.830 teve o cuidado de atender a esse requisito, mas ainda assim o governo brasileiro hesita em lançar mão do instrumento, diante de qualquer insinuação dos Estados Unidos de que poderíamos “perder prioridade” nas listas de preferências de comércio exterior do país, onde se elevam ou baixam as tarifas de importação para parceiros comerciais conforme o seu bom ou mau comportamento – ou melhor, conforme o seu grau de submissão aos interesses norte-americanos.

   Alarmado diante da rápida escalada dos custos do programa brasileiro de Aids, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) recomendou formalmente ao Ministério da Saúde, há cerca de um ano, a adoção da licença compulsória para os ARVs lopinavir/ritonavir (o Kaletra, da Abbott), efavirenz e tenofovir, que representam 80% dos gastos com matéria-prima para o coquetel anti-Aids e comprometem a sustentabilidade do programa. A medida teve grande repercussão e contou com o apoio de aguerridas organizações não-governamentais voltadas para o combate à Aids, mas, novamente, serviu apenas para a obtenção de mais uma redução de preços junto ao principal fornecedor. Enfim, fica a pregunta:
  Qual interesse deve prevalecer; o das multinacionais de farmácia ou das enormes populações pobres dos países do terceiro mundo ?


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